Da janela vejo uma marquise decrépita com ferro enferrujado, alumínio e janelas de vidro fino com relevos. Desde sempre que vejo, também, uma estante de alumínio com produtos de limpeza na prateleira do topo. Poucas vezes vejo alguém assomar a essa janela e só se vê a ombreira da porta de madeira, por dentro.

Mas atentei sempre que, quem quer que seja, tem sempre cerca de cinco embalagens de líquido de lavar a louça amarelo. Nunca o número de embalagens diminui. Até hoje.

Hoje, vi alguém a ir à prateleira e a retirar cada embalagem segurando-a na mão direita, lendo-lhe o rótulo, e comparando-o com outra embalagem de líquido de lavar a loiça verde que segura na mão esquerda. Vê um por um atentamente, volta a colocá-lo – só com a mão direita-, ajeita-o, passa para o seguinte.

Devo ter desviado a atenção cinco ou dez segundos e agora vejo que há menos embalagens do que me lembro, mas não me parece que a senhora os tenha levado em braços. Será que já lá estavam menos?

Como é que são repostos? Deixam ficar um lugar vazio? Quem é que precisa de ter sempre cinco embalagens de líquido de lavar a louça?

Só lá vejo dois, agora, e a angústia cresce porque não vi se os outros já não estavam lá ou se estavam e foram levados, e se sim para onde e com quem. Não vi ou não recordo? Era um bando de embalagens de líquido de lavar a loiça que nunca deu por mim e eu só penso nos truques que prego à minha memória. Porque sou eu que o faço para a culpar, por exemplo, de se lembrar de ti e julgar que não foi recíproco. Mas depois vejo que aquilo que falha são as recordações, e não propriamente a memória, porque quando penso em ti na paragem de autocarro chamas por mim passado uns minutos.

Nem precisei de duvidar se te vi ou não, como com as embalagens. Sei que bastou uma vez e que a memória não me atraiçoa. Antes, sou eu que ponho e disponho dela, sem deixar que se torne uma recordação .

Descobri a tua letra acidentalmente sem ter tido a oportunidade de te pedir que me escrevesses uma frase qualquer num papel, como era minha intenção.

Conhecemos pouco a letra das nossas pessoas e eu passei a infância e a juventude a pensar que todos tinham uma letra pujante, como a da minha mãe, e o resto do tempo dediquei a estragar a minha em arestas amargas e impacientes.

A tua letra apareceu num documento aborrecido com assinaturas, tomadas de palavra, resoluções e deliberações. Sempre pensei que a tua letra fosse uma sucessão de rectas, tortuosa, quiçá um pouco esguia. Afinal, não é. Tem a confiança de peito dilatado em plumas que costumas trazer. Redonda nas três letras principais, mais amigável do que alardeias ser, e tão melíflua como efectivamente és.

Dois ou três laços onde o meu dedo mindinho se enrolaria lentamente, como que vogando debaixo de água numa dança de acertos de alvo ainda mais bonita do que aquela que já conheces. Esperaria que se estreitassem até sentir o aperto justo e lento, indicador de que ali há vida mas que não deixo de ser uma presa e estou por segundos.

As restantes letras do teu nome apertam-se entre as outras, tal como os teus silêncios, reservas e indiferenças escapulidas pé ante pé.

O fim da assinatura é, como não podia deixar de ser, porque vindo das tuas mãos, disparado contidamente em várias direcções, mas de forma precisa. Como que dando por terminada a conversa sem mais delongas e empurrando-me para fora da página acompanhada de um mantra repetitivo e contraditório com que firmas a tua recusa em querer ver a minha assinatura na mesma página em que a tua figura, lado a lado, talvez num dia de primavera a cheirar a magnólia, com uma mão cheia de amigos e família.

Uma acta, por fim, desatada.

Era já noite, nem sequer aquela hora do lobo de que tanto gosto, que empresta o cinzento azulado a tudo. Noite na Avenida dos Aliados, apesar de ainda nem ser hora do jantar. Com luzes amareladas dos lampiões, sem chuva a chicotear.

Sou míope, mas ando corrigida. E espero que fique verde, na passadeira. Ultimamente, esse verde teima em chegar por causa do trânsito tonto que flui ora de cima, ora de uma rua de onde antes não desembocava. Insisto sempre no botão, irritada. Como quem não desiste sabendo que vai perder.

Nisto, decido parar e olhar. Deixar-me de masoquismos, mas mais motivada pela curiosidade pelo que não percebo: do outro lado dos paralelos, já perto daquela espécie de espelho de água, no chão, vejo movimentos sacudidos logo interrompidos por imobilidade, como num filme que é acelerado artificialmente ou aquelas filmagens de natureza a apodrecer. Passa-se junto ao chão, na sombra das árvores que vão crescendo (e como é caricato que, mesmo de noite, ali haja sombra). Não consigo perceber o que é, o que me faz suster a respiração muitas vezes: acontece-me quando não percebo o que vejo, além de, curiosamente, ficar meia surda, e não ao contrário como manda o aperfeiçoamento natural.

Parece um saco pequeno, preto, levado pelo vento. Mas não, não será, o movimento não se adivinha tão solto como costuma ser o dos sacos voadores. Parece que não se levanta do chão nem sequer para se deixar ir, qual Ofélia no rio. Tem umas arestas estranhas e tão depressa estrebucha e tenta subir, como se agarra ao chão em sacudidelas de desespero.

Agora anseio o verde mais do que pela irritação e pela vontade de não parar a marcha. Quero ver de perto, ainda que sentindo uma ponta de receio: chego a pensar, e se é um morcego? E se me arranca os olhos mal me aproximo? E se me morde o proeminente nariz?

Sinto também alguma vergonha. Sei que quem está em volta, ora tirando fotografias para desejar boa noite aos seguidores com a câmara na frente e a Câmara nas costas, ora esperando o que não se espera naquelas cadeiras minúsculas, vai ficar a olhar para mim, ali especada para o chão. Só eu, sem uma lanterna, propósito percepcionável, companhia, posição de repouso ou passagem. Apenas eu de pé, a olhar para o chão, debaixo das árvores que não protegem de nada, muito menos agora.

Mas assim fico e concluo finalmente que são dois pássaros parecidos com melros, pretos, à bulha, como se fosse um grande pássaro apenas com múltiplas asas e deformado. Lutam ferozmente por algo que um deles tem no bico. Não chego a conseguir ver o que é.

Sentem-me e afastam-se. Esta luta não é tua para veres, às tantas vens aqui tentar separar-nos ou comer-nos aos dois e isto é uma conversa entre asas e bicos, segue o teu caminho se não queres problemas, olha que já sabes que não gostamos particularmente de ti.

Conseguem voar até um ramo e continuam num chilreio nervoso, diferente, pegados um ao outro, as asas cobrindo o adversário, e caem de novo ao chão, numa fúria de foguetão ou kamikaze, que quer colidir com a terra.

Aproximo-me e lançam-se, juntos, com uma rapidez impressionante para quem pareceria tão absorvido em pancadaria, para a água esverdeada em socos constantes. A água fica agitada, fazem mais barulho do que estariam à espera e, subitamente, um dos pássaros desaparece da minha vista – tive algum pudor em aproximar-me e olhá-los fixamente, que ridículo- e o outro voa triunfante para o ramo da árvore de onde tinham caído. Agora sim, olho-o com calma. É cinzento muito escuro e nem se digna a olhar-me. Solta um chilreio vitorioso. Do outro nem sombra, literalmente.

Contorno o espelho de água para continuar o meu caminho e, já do outro lado, vejo que as duas garotas com seguidores decidiram, desta feita, seguir os movimentos dos pássaros e, sem pudores, espreitam para a água. Também eu vejo, mas a uma distância que respeita o vencido sem o achincalhar: o outro pássaro encontra-se quase colado à parede, tentando equilibrar-se num rebordo e esconder-se do adversário.

Deixo-os, espantada por não ter visto um telemóvel em riste a filmar esta contenda como é apanágio dos nossos tempos. Com pena do perdedor, mas sabendo que não devo senti-la, porque não sabemos onde começaram nem onde acabam estas histórias.

Como, de resto, com todas as outras.

A noite na rua da cidade nunca é, verdadeiramente, noite. Por muito incompetentes que sejam os edis, costumam surgir os lampiões, ainda que um ou outro aleatoriamente desligado sabe se lá por que vontade de resistência.

E assim foi: rolávamos de carro pelo paralelo que brilhava pela chuva, casada com o reflexo dos lampiões, já a chegar a casa. A primeira coisa que vejo são umas botas. Depois, percebo que têm gente dentro e que estão de lado, uma por cima da outra. Em pouco tempo concluo que será alguém em posição fetal, com umas botas claras e que ficam amareladas à luz dos candeeiros.

Abrandamos mais à frente e a janela de trás do carro servirá de ecrã para o que acontece. Um homem junto à figura, um jovem no meio da rua com um cão pela trela a dirigir-se hesitante, uma jovem mais afastada a descrever um círculo alargado, tentando não se envolver no quadro.

É uma mulher. Tentam levantá-la pelas axilas, os ombros estão moles, mas a cabeça não está propriamente inerte. Mal fazem menção de a largar, é ela própria que mergulha no chão escondendo a cara nos braços cruzados por baixo da cabeça. Como se preparasse para uma sesta em cima da mesa de trabalho ou após o jantar, com os braços de almofada.

Está em protesto, mas não abana a cabeça. De cada vez que o homem a tenta erguer, ora por um braço, ora pelas axilas, algo desajeitadamente e também já vencido, ela lança-se controladamente nos paralelos, quase como se se quisesse fundir com eles, num movimento quase de bailado contemporâneo.

Penso depois que, se eu a quisesse levantar, encostaria o meu peito e coração às costas e faria dela um segundo corpo meu, mas talvez fosse precisa alguma raiva, e nada disso paira ali.

Os carros passam perigosamente perto daquela cabeça que não deveria estar ali, mas ali vive-se um outro tempo, sem paredes que escondam todas as frustrações, raivas, birras, desistências diárias.

O homem retirará o corpo dali para onde? Para que sítio com chão, paredes, tecto e molduras com retratos se arrastará aquela fugitiva? Quantas coisas quer aquela mulher deixar de ver, sem perceber bem se quer para sempre ou até o dia raiar?

Lembro-me muitas vezes, noite alta quando o coração me aperta numa hora infinita, que pinga sobre a minha testa e me faz tremer, que gostaria de me deitar de costas no meio de uma estrada ou de um cruzamento. Especialmente um cruzamento. Nunca ninguém os ocupa, nunca nenhum pensamento grandioso surgiu na cabeça de ninguém ao passar ou ficar nesses sítios. E espero, com algum desespero, que me surgisse alguma ideia brilhante de parar de pensar nesse momento e espaço.

Não há ideias brilhantes quando nos jorramos nos paralelos da rua. Nem , sequer, ali estamos. Pelo menos imagino que os olhos dos outros sobre nós deixem de importar e isso, ainda que fugazmente, pode ser libertador.

O motoqueiro pontual desce a Rua de Camões por volta das 9h05.

O ronronar da mota surge pelas minhas costas e sobrepõe-se à música que ouço sempre, talvez porque o escolha ouvir. Nunca o vi parado num semáforo ou no trânsito: segue sempre pela faixa do meio a um ritmo constante e seguro. Sigo a grande mancha gráfica indistinta nas costas do casaco preto, uma caveira branca, não muito preenchida. Só o vejo por menos de um minuto. Não sei o que faz, mas infiro que faça parte do clube de motoqueiros ali da Trindade, que tem estaminé montado.

Surpreende-me, muito simploriamente, que um rebelde tenha hora marcada para abrir a porta e estar ao serviço. Mas quanto de nós não está só à flor da pele, apenas para entrar pelos olhos dentro, como queremos que também nos entrem pelos nossos para criar mundos alternativos que nunca poderemos pisar. Um motoqueiro também vai buscar pão, também gosta das montanhas encurvadas como eu gosto, terá de organizar as quotas dos correlegionários para as actividades colectivas.

A vontade de apregoar o horror ao convencionalismo é tão previsível já, que logo se adivinha que é o mais padronizado e preguiçoso dos homens que o procura e apregoa dele gostar. Um círculo tão aborrecido como uma rotunda sem arte de rotunda.

Nem as horas de um rebelde são dele, entrançando-se sempre nas dos outros, ainda que possamos imaginar um motoqueiro tanto como lobo solitário, como zeloso membro do seu enxame. Será talvez a personagem que melhor conseguimos ver duplicada e conciliada. Um mensageiro de si próprio.

Das poucas vezes em que respirámos quase exactamente o mesmo ar, frente a frente, nunca me recordo daquilo que disseste por inteiro. Não consigo refazer o diálogo e solto baixinho um “parece que estou bêbada, estaria?” e tenho cortes na memória, verdadeiros apagões.

Lembro-me apenas de fragmentos, das respostas que preferia ter dado (mas como, se já nem sei com precisão e rigor onde começaste e onde acabaste a falar?) e recrio tudo conforme posso, atabalhoadamente, como se fugissem livros e tecidos pelos braços fora em vendaval.

Fassbinder e a confusão com Fassbender, a repetição dos problemas de afazeres profissionais que já me relataste duas vezes, queria ver-te em palco, sem agenda alguma, saudades.

Começo a achar que esta é a minha tentativa de atiçar, ainda mais, o fogareiro da saudade, como se duvidasse do que o tempo, a ausência e as minhas ilusões conseguem fazer tão bem por si só. Ou então é aquilo da embriaguez do enamoramento, finalmente em directo e ao vivo, em mim. Que triste, uma bêbeda equilibrista a solo.

trintaetres trintaequatro

Não gostei dos 33. Ia dizer que também não gostei dos 32, 31 ou 30, mas parece-me injusto.
Perdi vocabulário, porque é demasiado simplório dizer que não gostei destes anos apenas porque me sinto aquém.
É uma adolescência sem tempo ou horizonte: para testar, para tentar de novo, para acreditar que ainda sou muito nova.
Encontram-se, aliás, dispensados desde já, todos os quarentões e cinquentões de sacristia que pululam na minha vida e que se apressam a dizer “se eu tivesse a tua idade”. Fora daqui a pontapé nos rins, porque vai se a ver e o que vocês sabem, a mim já me esqueceu.
E é precisamente aqui que surge a guinada de dor: eu já devo ter sabido tudo, sem brilhos nem ilusões. Já tentei iludir-me pelo caminho e, um dia, vou lembrar de novo todas as conclusões que o filibusteiro do meu instinto já exarou em Acta.
Nestes três anos dos trinta tive os melhores amigos na espuma dos dias. Deram-me uma voz. Viram-me. Quiseram ver-me, sem se esconderem em subterfúgios de tédio. O meu tédio da vida e o deles partilha-se de forma consciente. Sabemos que queremos retirar sempre algo uns dos outros: está em cima da mesa, há acordo e reciprocidade.
Neste último ano, sem fazer nada por isso, vi a minha mãe safar-se temporariamente de uma avaria do corpo. Fui aos Açores, a Florença (como lhe tinha prometido), ao Algarve. Conheci as pessoas erradas no momento certo. Percebi que há seis anos não estava no meu lugar, no lugar que é meu (enquanto eu quiser iludir-me com isso).
Quero saber o que fazer comigo no mundo, mas não tenho manifestos de rede social como as pessoas que se consideram relevantó-políticó-bar-do-teatro-roupas-vintage-piadéticas-blasé.
O arrependimento, que me assaltou algumas vezes este ano, não é mais do que uma censura. O verdadeiro arrependimento, no sentido original da palavra, implicava que eu tivesse feito algo errado e procurasse redenção. Quando, na verdade, quando digo que me sinto arrependida, quase estou a procurar redenção para quem fez algo de errado. Muito cristãmente falando. Pois bem, aqui fica: Juro solenemente não tentar redimir outrem contrariando o meu proveito próprio e escapando-me da auto-censura.
Ainda assim, quero viver e não ter medo do medo. Quero estar aqui.

Um bando em semicírculo, é o que me espera à porta do prédio do escritório . Vou tentando descortinar o motivo da reunião à medida que me aproximo, e se os meus olhos fossem uma câmara, o espectador estaria a gingar para cima e para baixo , com o meu andar.
A pergunta que se impõe feita pela recém chegada, que já deve ter sido rezada em ladainha pelos mais madrugadores, solta-se: o que é que se passa?
Uma pergunta preguiçosa, porque a cena é quase auto explicativa: um rapaz novo, com cara preocupada, meio curvado sobre a fechadura, maneja uma espécie de pinça ou gazua na fechadura da pesada porta de ferro e vidro.
A rapariga do gabinete de contabilidade e marmita na mão , que nunca dispenso de cumprimentar, responde-me logo , fruto da nossa familiaridade forjada nas saídas dos respectivos escritórios: a porta não abre, já estamos assim há algum tempo.
Aquilo que já ameaçava acontecer, aqui estava. Uma porta que foi dando sinais, que se engasgava com certas posições da chave, como com certas palavras não ditas. Uma resistência que por vezes, de repente , parecia ceder fruto do milagre. A sacripanta sabe que , por causa dela, reuniões desfeitas com conflitos internacionais à espreita, advogados sem processos e togas a correr marcar presença no tribunal , aflições de casa de banho quase a rebentar, e-mails por responder, o telefone lá em cima a estrepitar agoniado sem uma mão caridosa que lhe valha.
E sabendo deste seu poder, mudo, de resistência e mistério sobre os porquês de nenhuma chave lhe convir mais, mantém-se ali e quase lhe apanho um sorriso oblíquo de triunfo amargo.
Persiste o rapaz, sem grande fé. Sente a pressão de todos o olharmos e de ainda ninguém ter conseguido auxílio de além Aliados.
Chega então uma Castafiore que abre alas entre nós perguntando, numa voz aflautada mas que se quer fazer sentir em todo e qualquer ouvido, a pergunta sacramental: o que se passa?
Mais meia dúzia de murmúrios requentados, iguais aos outros mas, desta vez , a resposta não foi um silêncio quase consolado de uns, pelo ligeiro atraso que a peripécia lhes permite gozar, tremebundo dos outros, que sabem que o trabalho os espera, a eles e só a eles, como o caixão de um dia. Foi uma invectiva aos deuses e à porta, que mais pareceu saída de um dramalhão mal montado, com um quase falso desespero: não ! Não pode ser, tens de abrir! Agarrando-se com veemência à sua chave , que entretanto decidiu ofertar à boca da porta caprichosa.
A impossibilidade de, pelas meras palavras, no mundo real, se fazer abrir uma porta com aquela voz exibicionista, fez me dizer a meia voz, com alguma presunção: isso não deve ajudar, creio eu.
Não me ouviu , claro está. Apenas a rapariga da contabilidade, que se riu. E na verdade, era dela a reacção que eu queria, numa cumplicidade fingida.
Um outro ajudante que se abeira, líquidos pela goela abaixo da impetuosa porta, palavras mansas entre dedos e acessórios metálicos e quando ninguém está a olhar, precisamente quando só está a porta e o seu mediador, juntos, num murmúrio nervoso , ela cede e abre.
Uma aragem especial percorre o grupo , uma série de movimentos contrariados, quase um feitiço quebrado: contavam com mais uns minutos , um telefonema mais. Quiçá um café roubado ao horário, mas a diplomacia atalhou. Ainda ouço por cima do ombro a Castafiore cismada – “está lá dentro alguma coisa não está? Eu sei que está!” – tentando desculpar a birra cansada da porta, procurando um bruto culpado que, depois, não mede as consequências dos seus desleixos e que afectam todos naquele pequeno mundo.
Subo as escadas, pesadamente, pensando se a porta antes queria também subir comigo e sentar-se um pouco, longe do escrutínio de quem tudo queria dela, menos deixá-la oferecer, uma vez que fosse, um silêncio diferente do dos outros todos , nos quais também ninguém repara quando por ela passam, apressados e indiferentes.

Aos teus 70 anos, meus 33, idade de Cristo na cruz, posso ainda abraçar te. Num ano que já vem manco , a arrastar uma perna desde lá atrás, como quem caiu de um telhado e não curou a fractura, posso e vou abraçar te. Num ano em que, além de coxo, veio dizer que os abraços são proibidos, porque não sabem , na verdade, para que serve um abraço , posso e vou abraçar-te.
A primeira imagem que me surge de um abraço nosso não é a de um anúncio televisivo pindérico de telecomunicações. É um abraço revoltado, de camisa de forças , num fim de semana em que tenho de trabalhar, e não sei se o tempo chega, e o sono esvai-se em formigueiros e dores no couro cabeludo.
É um abraço forçado de que me solto , qual gato acossado, mas que me dirá, sempre, que nos erros que se gritam, cabe uma casa a que regresso todas as horas em que o desespero me mira. Mesmo que não o saiba imediatamente .
Um abraço de que não suporto o toque , porque só quero dissolver-me, mas aos teus 70 anos estás viva, aqui, com menos um pedaço do que no anterior, um intruso desalojado e que vigio de boca arreganhada e arame farpado que te dilacera a pele todos os dias no último mês dos teus 70 anos.
Começam os 70, que tem 33 dentro e mais 48 do meu irmão , a nossa vida junta ultrapassa o número de anos do teu cartão de cidadão, já viste ?
Multiplicam se e esvaem-se nas saudades que dizes já sentir quando não estiveres cá, por estares certa de que continuarás a sentir tudo como dantes, por nós .
É por isso que tiras pedaços de ti , que te cosem, que te queimas , gelas, compões os defeitos da máquina de 70 anos que já deixaste andar por montes e vales , ao cair da noite no inverno , à chuva, frio e pedras nos bolsos , por causa de cães vadios famintos.

Parabéns, mãe .

10 de Abril de 2021

Quando a voz te chega, do outro lado, e é um milagre, não consegues deixar de sacudir os histerismos feitos de silêncios pesados e grandes resoluções anunciadas (seja por ti, seja pelos outros da tua vida).

Quero fixar o momento em que a noite caía e eu sentada num banco de plástico a olhar um átrio que parecia uma sala de espera antes de embarcar num avião, e não o átrio do hospital.

Eu, aparentemente só, os pés a balouçar, e gente que se senta à minha beira apesar das regras sanitário-aborrecidíssimas. A mão dói-me, apercebo-me, de agarrar o telemóvel com força. O papel precioso com o numero da cama onde ela estará, a enfermaria e a extensão para onde já liguei duas ou três vezes, está todo amarrotado e voa-me da mão com brisas impossíveis. Lanço impropérios à minha falta de jeito.

De repente, encho-me de uma paciência animada e feliz ao ensinar a uma senhora já mais velha como ler as mensagens que recebe do serviço alerta do São João. Espera a alta do marido. Desvelo-me em pormenores e em cuidados que rejeito à minha enferma, e tento redimir-me com alguém que não se lembrará mais de mim. Não há uma compensação, e isso é ainda mais vergonhoso, penso eu. Sei que não vou compor a situação, nem isto que te foi colocado no peito me fará ter mais paciência, mas sei o que sinto com solidez, independentemente de ser arisca e de soltar impropérios e um “não” imediato às tarefas irritantes que me pede. Não sei quando vou mudar esse traço constante nos meus dias, mas antevejo que um dia, tal como deixei de roer as unhas, deixarei de ter o sangue a ferver perante os pedidos e terei de me reconciliar com a ideia de que o amor estava no resto e que não posso procurar desculpa por essas falhas.

Sei agora que esta lufada de ar quente de bonomia era o frémito do pressentimento que o telefone tocaria, com som pela primeira vez em anos, não queria perder quaisquer novas que me quisessem dirigir.

Vejo o nome no ecrã – Mãe novo – a fotografia dos anos 90, ela com cabeleira farta encaracolada, eu pequena, de tigela brilhante, unhas semi pintadas a observar o que me mostrava ao colo, assente na anca esquerda. A música saltitante do toque de telemóvel que já me sobressalta sem estar à espera de notícias de vida ou morte, que fará hoje.

“Estou, filha, já está”.

A voz. Podia não mais ter ouvido aquela voz rouca que ninguém confunde, nem as senhoras das lojas, das marcações, da lavandaria. Aquela voz podia ter ido e não voltado, como me disse o R. Não me lembro de qual poderia ter sido a última palavra que me tinha dirigido, depois de a largar na sala de embarque, em fila contra a parede, com outras pessoas indistintas que seguiram em fila indiana para as várias enfermarias.

Ainda falámos depois de a largar, benditos tijolos electrónicos, e mesmo sem poder afirmar com a certeza que exijo numa sala de tribunal, sei como poucas coisas na minha vida que lhe disse que a amava muito e que ela mo disse a mim, já na maca.

“Já está, estou bem”.

Uma voz que volta, solta no meu peito.

Quero recordar o dia de sol de domingo, quando teve alta. Quero recordar a minha corrida desajeitada desde o uber, à entrada do caminho de cimento, até à entrada do átrio das visitas. A meio, liga-me a dizer que já está cá em baixo, para o cigarro providencial e eu, atabalhoadamente, a dizer já cá estou, já cá estou, como se ela se fosse dissolver. Ainda não estava, mas queria estar, e era isso que lhe dizia e a confundiu porque não me via, não me sentia a voz sem fôlego. O sol nas costas, o sol pelas janelas largas, e nem a via no meio de tão pouca gente, como é possível, ainda por cima tinha decorado a cor do casaco – amarelo mostarda – caramba, orienta-te, ali está. Não paro de correr até amortecer a minha velocidade e a abraçar com cuidado, para não a magoar. Como poucas vezes fiz na vida.

A voz que voltou, o contorno dos braços fortes e o cabelo loiro, numa mancha de amarelo mostarda ao sol.