Era já noite, nem sequer aquela hora do lobo de que tanto gosto, que empresta o cinzento azulado a tudo. Noite na Avenida dos Aliados, apesar de ainda nem ser hora do jantar. Com luzes amareladas dos lampiões, sem chuva a chicotear.
Sou míope, mas ando corrigida. E espero que fique verde, na passadeira. Ultimamente, esse verde teima em chegar por causa do trânsito tonto que flui ora de cima, ora de uma rua de onde antes não desembocava. Insisto sempre no botão, irritada. Como quem não desiste sabendo que vai perder.
Nisto, decido parar e olhar. Deixar-me de masoquismos, mas mais motivada pela curiosidade pelo que não percebo: do outro lado dos paralelos, já perto daquela espécie de espelho de água, no chão, vejo movimentos sacudidos logo interrompidos por imobilidade, como num filme que é acelerado artificialmente ou aquelas filmagens de natureza a apodrecer. Passa-se junto ao chão, na sombra das árvores que vão crescendo (e como é caricato que, mesmo de noite, ali haja sombra). Não consigo perceber o que é, o que me faz suster a respiração muitas vezes: acontece-me quando não percebo o que vejo, além de, curiosamente, ficar meia surda, e não ao contrário como manda o aperfeiçoamento natural.
Parece um saco pequeno, preto, levado pelo vento. Mas não, não será, o movimento não se adivinha tão solto como costuma ser o dos sacos voadores. Parece que não se levanta do chão nem sequer para se deixar ir, qual Ofélia no rio. Tem umas arestas estranhas e tão depressa estrebucha e tenta subir, como se agarra ao chão em sacudidelas de desespero.
Agora anseio o verde mais do que pela irritação e pela vontade de não parar a marcha. Quero ver de perto, ainda que sentindo uma ponta de receio: chego a pensar, e se é um morcego? E se me arranca os olhos mal me aproximo? E se me morde o proeminente nariz?
Sinto também alguma vergonha. Sei que quem está em volta, ora tirando fotografias para desejar boa noite aos seguidores com a câmara na frente e a Câmara nas costas, ora esperando o que não se espera naquelas cadeiras minúsculas, vai ficar a olhar para mim, ali especada para o chão. Só eu, sem uma lanterna, propósito percepcionável, companhia, posição de repouso ou passagem. Apenas eu de pé, a olhar para o chão, debaixo das árvores que não protegem de nada, muito menos agora.
Mas assim fico e concluo finalmente que são dois pássaros parecidos com melros, pretos, à bulha, como se fosse um grande pássaro apenas com múltiplas asas e deformado. Lutam ferozmente por algo que um deles tem no bico. Não chego a conseguir ver o que é.
Sentem-me e afastam-se. Esta luta não é tua para veres, às tantas vens aqui tentar separar-nos ou comer-nos aos dois e isto é uma conversa entre asas e bicos, segue o teu caminho se não queres problemas, olha que já sabes que não gostamos particularmente de ti.
Conseguem voar até um ramo e continuam num chilreio nervoso, diferente, pegados um ao outro, as asas cobrindo o adversário, e caem de novo ao chão, numa fúria de foguetão ou kamikaze, que quer colidir com a terra.
Aproximo-me e lançam-se, juntos, com uma rapidez impressionante para quem pareceria tão absorvido em pancadaria, para a água esverdeada em socos constantes. A água fica agitada, fazem mais barulho do que estariam à espera e, subitamente, um dos pássaros desaparece da minha vista – tive algum pudor em aproximar-me e olhá-los fixamente, que ridículo- e o outro voa triunfante para o ramo da árvore de onde tinham caído. Agora sim, olho-o com calma. É cinzento muito escuro e nem se digna a olhar-me. Solta um chilreio vitorioso. Do outro nem sombra, literalmente.
Contorno o espelho de água para continuar o meu caminho e, já do outro lado, vejo que as duas garotas com seguidores decidiram, desta feita, seguir os movimentos dos pássaros e, sem pudores, espreitam para a água. Também eu vejo, mas a uma distância que respeita o vencido sem o achincalhar: o outro pássaro encontra-se quase colado à parede, tentando equilibrar-se num rebordo e esconder-se do adversário.
Deixo-os, espantada por não ter visto um telemóvel em riste a filmar esta contenda como é apanágio dos nossos tempos. Com pena do perdedor, mas sabendo que não devo senti-la, porque não sabemos onde começaram nem onde acabam estas histórias.
Como, de resto, com todas as outras.