A noite na rua da cidade nunca é, verdadeiramente, noite. Por muito incompetentes que sejam os edis, costumam surgir os lampiões, ainda que um ou outro aleatoriamente desligado sabe se lá por que vontade de resistência.

E assim foi: rolávamos de carro pelo paralelo que brilhava pela chuva, casada com o reflexo dos lampiões, já a chegar a casa. A primeira coisa que vejo são umas botas. Depois, percebo que têm gente dentro e que estão de lado, uma por cima da outra. Em pouco tempo concluo que será alguém em posição fetal, com umas botas claras e que ficam amareladas à luz dos candeeiros.

Abrandamos mais à frente e a janela de trás do carro servirá de ecrã para o que acontece. Um homem junto à figura, um jovem no meio da rua com um cão pela trela a dirigir-se hesitante, uma jovem mais afastada a descrever um círculo alargado, tentando não se envolver no quadro.

É uma mulher. Tentam levantá-la pelas axilas, os ombros estão moles, mas a cabeça não está propriamente inerte. Mal fazem menção de a largar, é ela própria que mergulha no chão escondendo a cara nos braços cruzados por baixo da cabeça. Como se preparasse para uma sesta em cima da mesa de trabalho ou após o jantar, com os braços de almofada.

Está em protesto, mas não abana a cabeça. De cada vez que o homem a tenta erguer, ora por um braço, ora pelas axilas, algo desajeitadamente e também já vencido, ela lança-se controladamente nos paralelos, quase como se se quisesse fundir com eles, num movimento quase de bailado contemporâneo.

Penso depois que, se eu a quisesse levantar, encostaria o meu peito e coração às costas e faria dela um segundo corpo meu, mas talvez fosse precisa alguma raiva, e nada disso paira ali.

Os carros passam perigosamente perto daquela cabeça que não deveria estar ali, mas ali vive-se um outro tempo, sem paredes que escondam todas as frustrações, raivas, birras, desistências diárias.

O homem retirará o corpo dali para onde? Para que sítio com chão, paredes, tecto e molduras com retratos se arrastará aquela fugitiva? Quantas coisas quer aquela mulher deixar de ver, sem perceber bem se quer para sempre ou até o dia raiar?

Lembro-me muitas vezes, noite alta quando o coração me aperta numa hora infinita, que pinga sobre a minha testa e me faz tremer, que gostaria de me deitar de costas no meio de uma estrada ou de um cruzamento. Especialmente um cruzamento. Nunca ninguém os ocupa, nunca nenhum pensamento grandioso surgiu na cabeça de ninguém ao passar ou ficar nesses sítios. E espero, com algum desespero, que me surgisse alguma ideia brilhante de parar de pensar nesse momento e espaço.

Não há ideias brilhantes quando nos jorramos nos paralelos da rua. Nem , sequer, ali estamos. Pelo menos imagino que os olhos dos outros sobre nós deixem de importar e isso, ainda que fugazmente, pode ser libertador.

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