Quando a voz te chega, do outro lado, e é um milagre, não consegues deixar de sacudir os histerismos feitos de silêncios pesados e grandes resoluções anunciadas (seja por ti, seja pelos outros da tua vida).

Quero fixar o momento em que a noite caía e eu sentada num banco de plástico a olhar um átrio que parecia uma sala de espera antes de embarcar num avião, e não o átrio do hospital.

Eu, aparentemente só, os pés a balouçar, e gente que se senta à minha beira apesar das regras sanitário-aborrecidíssimas. A mão dói-me, apercebo-me, de agarrar o telemóvel com força. O papel precioso com o numero da cama onde ela estará, a enfermaria e a extensão para onde já liguei duas ou três vezes, está todo amarrotado e voa-me da mão com brisas impossíveis. Lanço impropérios à minha falta de jeito.

De repente, encho-me de uma paciência animada e feliz ao ensinar a uma senhora já mais velha como ler as mensagens que recebe do serviço alerta do São João. Espera a alta do marido. Desvelo-me em pormenores e em cuidados que rejeito à minha enferma, e tento redimir-me com alguém que não se lembrará mais de mim. Não há uma compensação, e isso é ainda mais vergonhoso, penso eu. Sei que não vou compor a situação, nem isto que te foi colocado no peito me fará ter mais paciência, mas sei o que sinto com solidez, independentemente de ser arisca e de soltar impropérios e um “não” imediato às tarefas irritantes que me pede. Não sei quando vou mudar esse traço constante nos meus dias, mas antevejo que um dia, tal como deixei de roer as unhas, deixarei de ter o sangue a ferver perante os pedidos e terei de me reconciliar com a ideia de que o amor estava no resto e que não posso procurar desculpa por essas falhas.

Sei agora que esta lufada de ar quente de bonomia era o frémito do pressentimento que o telefone tocaria, com som pela primeira vez em anos, não queria perder quaisquer novas que me quisessem dirigir.

Vejo o nome no ecrã – Mãe novo – a fotografia dos anos 90, ela com cabeleira farta encaracolada, eu pequena, de tigela brilhante, unhas semi pintadas a observar o que me mostrava ao colo, assente na anca esquerda. A música saltitante do toque de telemóvel que já me sobressalta sem estar à espera de notícias de vida ou morte, que fará hoje.

“Estou, filha, já está”.

A voz. Podia não mais ter ouvido aquela voz rouca que ninguém confunde, nem as senhoras das lojas, das marcações, da lavandaria. Aquela voz podia ter ido e não voltado, como me disse o R. Não me lembro de qual poderia ter sido a última palavra que me tinha dirigido, depois de a largar na sala de embarque, em fila contra a parede, com outras pessoas indistintas que seguiram em fila indiana para as várias enfermarias.

Ainda falámos depois de a largar, benditos tijolos electrónicos, e mesmo sem poder afirmar com a certeza que exijo numa sala de tribunal, sei como poucas coisas na minha vida que lhe disse que a amava muito e que ela mo disse a mim, já na maca.

“Já está, estou bem”.

Uma voz que volta, solta no meu peito.

Quero recordar o dia de sol de domingo, quando teve alta. Quero recordar a minha corrida desajeitada desde o uber, à entrada do caminho de cimento, até à entrada do átrio das visitas. A meio, liga-me a dizer que já está cá em baixo, para o cigarro providencial e eu, atabalhoadamente, a dizer já cá estou, já cá estou, como se ela se fosse dissolver. Ainda não estava, mas queria estar, e era isso que lhe dizia e a confundiu porque não me via, não me sentia a voz sem fôlego. O sol nas costas, o sol pelas janelas largas, e nem a via no meio de tão pouca gente, como é possível, ainda por cima tinha decorado a cor do casaco – amarelo mostarda – caramba, orienta-te, ali está. Não paro de correr até amortecer a minha velocidade e a abraçar com cuidado, para não a magoar. Como poucas vezes fiz na vida.

A voz que voltou, o contorno dos braços fortes e o cabelo loiro, numa mancha de amarelo mostarda ao sol.

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